Vocabulário:
– Bateria de alumínio: coleção de panelas e utensílios domésticos expostos com orgulho pelas antigas donas de casa, como uma prova de sua competência no cuidado com o lar. Eram areadas até que ficassem brilhantes e exibidas como troféus pelas senhoras.
– Areados: esfregados com bucha vegetal e areia.
– Ferro em brasa: o ferro elétrico só foi inventado em 1882. Antes, colocava-se brasa em um ferro para passar roupas.
– Anil: corante azul utilizado no século XX para o enxágue de roupas brancas; diz-se, inclusive, que tem propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias.
As histórias das mães entre panelas e saudades
Como conciliar sentimentos e utensílios domésticos? Parece engraçado e até mesmo enganoso, mas não é. O tempo vai deixando pegadas que nem percebemos, pois estamos sempre metidos em alguma emergência inadiável.
Dia das Mães é também Dia das Avós e Bisas e Tataravós e de toda a Ancestralidade feminina que povoou o mundo desde tempos ancestrais. A avó que conheci nasceu em 1889, ainda no século XIX, e morreu aos 104 anos. Fazia roscas, pães caseiros, quebradores, bolos e maravilhas em crochê. Como as mulheres da época, mantinha nas prateleiras de madeira rústica da cozinha uma bateria de alumínio que repousava sobre forros brancos, alvejados com anil, com acabamento em crochê.
Naquele início do século 20, as mães pariam muitos filhos, cuidavam da casa, da família, dos ternos de linho dos maridos, impecavelmente passados a ferro em brasa, e em raríssimas exceções desempenhavam algum trabalho fora, a menos, é claro, que fosse para a sobrevivência da prole por viuvez ou por necessidade de sobrevivência.
Minha mãe, nascida em 1922, estudou em Colégio de Freiras e se formou em Letras Vernáculas no mesmo ano em que sua primogênita concluía a Faculdade. Só pôde frequentar o Curso Superior depois de criar os 8 filhos. Apesar da resistência inicial do marido, começou a dar aulas em um grupo escolar – era como se chamavam as escolas públicas de ensino fundamental – e assumiu a direção de um outro na região oeste de Goiânia que, na década de 1960, não estava muito povoada e era um vasto terreno coberto por mato e árvores. Minha mãe visitava as famílias que moravam naquele ambiente ainda rarefeito para convidá-las a matricular seus filhos no Grupo Escolar Pio XII. Lia muito, estudava e assistia a filmes cult que costumava discutir com pessoas preparadas.
Mas e as panelas? Nem livros, nem faculdade, nem os filmes cult conseguiram apagá-las na linha do tempo da minha mãe. Não era mulher de forno e fogão. Mas suas panelas estavam sempre impecáveis. Eu as mantenho resplandecentes como prata e ainda hoje assam biscoitos e afins. É como se elas me trouxessem de volta, aos meus 74 anos, a luta da minha avó tão desprovida das comodidades do mundo contemporâneo, assim como minha mãe que partiu há 24 anos. Mulheres de luta e de trazer gente ao mundo para deixar como herança dignidade, trabalho, luta, amor, família . A saudade da minha mãe apura lembranças ancestrais. Meu coração se enche de ternura e afeto. As panelas brilham no fogão moderno.
Maria Dulce Machado